Amigo Cão!?


  O homem, em sua eterna busca por companhia, descobriu no cão um aliado. Mas, ao invés de celebrar a natureza selvagem e independente deste animal, optou por moldá-lo, domá-lo, dobrá-lo à sua vontade. O processo, longo e intrincado, fez do cão o que ele é hoje: o fiel amigo, o companheiro servil, o guardião da casa. Mas a que custo?
 Desde os primórdios, a humanidade temia a ferocidade que habitava os olhos de seus companheiros caninos. A força bruta, os dentes afiados, o instinto predatório — tudo isso representava uma ameaça latente, um perigo que precisava ser controlado. E assim, o homem lançou mão de seu poder. As correntes, as coleiras, os comandos firmes — instrumentos de uma opressão sutil, mas implacável.


 Treinar um cão é, em essência, um exercício de dominação. É o ato de suprimir a fera que habita o coração de cada cão e substituí-la por uma devoção cega. E quanto mais o cão obedece, mais se afasta de sua verdadeira natureza. O lobo, o caçador, o ser livre que um dia foi, agora é uma sombra, um eco distante, abafado pelos gritos de "senta", "fica" e "vem cá".

 É uma relação paradoxal. Queremos o amor de nossos cães, mas esse amor é comprado ao custo da liberdade deles. O que nos encanta neles — a lealdade, a doçura, a obediência — são, na verdade, sinais de uma alma que foi subjugada, moldada para se encaixar em nossos moldes.

 Mas e se, em um momento de descuido, o antigo espírito despertasse? Se, por um breve segundo, o cão lembrasse do que é capaz, da força que reside em seus músculos e da ferocidade que pode ser desencadeada por um simples estalar de dentes? Seria uma lembrança assustadora para nós, que temos tanto a perder.

 Ao adestrar o cão, não só o protegemos de si mesmo, mas também nos protegemos dele. É um pacto silencioso: você será meu amigo, mas somente se eu puder ser seu mestre. Caso contrário, o risco é grande demais, o perigo muito real.

 E assim, seguimos nesse jogo de poder disfarçado de amizade, nesse equilíbrio frágil entre a dominação e o afeto. O cão nos oferece sua lealdade, e em troca, damos a ele segurança, conforto, e uma vida onde suas verdadeiras capacidades são cuidadosamente guardadas.

 Mas no fundo, sempre existirá uma parte de nós que teme o que o cão poderia ser se o deixássemos ser livre. E é esse medo que nos leva a apertar a coleira, a erguer a voz, a estabelecer as regras. Porque, no fundo, sabemos que, se um dia o cão se lembrar de sua verdadeira natureza, a relação mudará para sempre.

 Por isso, ao buscar um amigo, o homem acaba por oprimir. E ao oprimir, ele transforma o amigo em algo que não é — uma criatura submissa, dependente, que ama, mas com um amor que não é inteiramente seu. Um amor moldado, condicionado, fruto de uma relação que começou com a necessidade de dominação.

 Essa é a nossa tragédia silenciosa: para ganhar um amigo, sentimos que primeiro precisamos criar um súdito. E, ao fazê-lo, perdemos a chance de conhecer o verdadeiro espírito que habita ao nosso lado, escondido atrás de olhos que, por vezes, ainda brilham com o fogo selvagem de antigamente.

Albert Ramos Set/24

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